Igualdade de gênero depende de combate ao racismo

“Eu preciso que limpe, lave, passe, guarde, cozinhe e olhe as crianças quando eu precisar”. Este “desabafo” viralizou recentemente nas redes sociais e foi feito por uma influenciadora brasileira branca, de classe média alta, que se mudou para os Estados Unidos e busca uma outra mulher que realize todo o trabalho doméstico: alguém que, para ela, deve trabalhar muito e receber pouco (ou nada). “No Brasil a gente estava feito! Uma pessoa lá com a gente fazia tudo. Aqui pra passar, 25 dólares a mais, pra dobrar 25 dólares, pra esticar o braço mais 10 dólares. É assim!”. Há muitos perfis que expõem “vagas de emprego” ou “oportunidades” (inclusive anunciadas por mulheres brancas) que exigem muito e pagam quase nada, quando não há uma proposta de “troca” de trabalho doméstico por um “lugar para viver”, ou seja, exploração de mão-de-obra 24h por dia em todos os dias da semana.

Fonte: Danilo Verpa/Folhapress

Quando a ascensão econômica de mulheres brancas ainda depende da exploração de outras mulheres (com trabalhos subalternizados, delegação das tarefas domésticas, salários inferiores a uma maioria que é preta e pobre), significa de fato um avanço em termos de igualdade? Isso não muda a estrutura da divisão sexual do trabalho, já que ainda existem papéis e funções consideradas “femininas”, a diferença é que serão executadas por mulheres marginalizadas. O mito da democracia racial brasileira, tão falso quanto a existência de igualdade de gênero no mercado de trabalho, apaga esses privilégios. Falar de raça não se restringe apenas à negritude, mas também nos leva a entender que ser branco ou branca carrega significados culturais e responsabilidades.

As Teorias de Raça afirmam que, no Brasil, é favorecido o fenótipo de pessoa branca, ou seja, quem é lido socialmente assim, mesmo que tenha ascendência negra ou indígena. A mulher branca não é entendida como racializada, pelo contrário, é assimilada culturalmente como o normal, o padrão do “ser mulher” no cotidiano e nas representações midiáticas. A negra e a indígena, por exemplo, são consideradas as outras, as diferentes. A edição do Big Brother Brasil 21 (BBB 21) ajudou a popularizar a palavra “branquitude”, quando Lumena abordou a temática em algumas falas durante o programa. Chamou atenção quando a apresentadora (branca) Ana Maria Braga comentou uma das falas de Lumena: “Não entendi esse negócio de branquitude. A gente tem culpa disso?”.

Não se trata de colocar a culpa em alguém por ter nascido com determinada cor (o que sequer resolveria algum problema), mas de refletir sobre nosso lugar (de pessoas brancas) em um país como o Brasil. Ter ou não uma aparência de pessoa branca carregará significados ao longo da vida, impactando nas oportunidades e riscos, inclusive no aumento da possibilidade de sermos ou não mortas, tanto nas estatísticas de violência policial, quanto nas de violência doméstica. Dessa forma, é preciso entender que a branquitude estrutura toda a sociedade, neutralizando o que é “ser branco”, tornando “exótica” a existência não branca.

Ana Maria Braga, ao “defender a miscigenação brasileira”, romantiza os estupros coloniais contra mulheres negras e indígenas e alimenta o discurso do “racismo reverso”, algo impossível em um país no qual o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) atesta que, de 1986 a 2019, a desigualdade racial de renda persiste e, que a renda média dos brancos permanece ao menos duas vezes maior do que a dos negros. Xuxa, outra apresentadora branca, também protagonizou um episódio midiático em que recorreu ao discurso (confortável) de desconhecimento ou de não reconhecimento de seus próprios privilégios de branca. Entrevistada por Taís Araújo, Xuxa diz que queria vir com o cabelo e a pele da atriz negra, restringindo supostamente o problema da mulher negra a uma questão de ter ou não amor próprio, o que pode levar a uma culpabilização das mulheres negras pelas opressões que sofrem.

A mulher branca não é só favorecida com a estrutura racial que baseia nossa sociedade, mas também a (re)produz. Essa perpetuação de poder se dá por meio de mecanismos de discriminação diretos e de discursos, como os de Xuxa e Ana Maria Braga. Está ainda em reclamações e anúncios que cobram, sem qualquer pudor, valores irrisórios por uma faxina ou ainda oferecem vagas que são a materialização da exploração do trabalho doméstico no Brasil.

No Brasil, ser branca é ter mais oportunidades de trabalho, por “parecer” mais honesta, trabalhadora e calma. É não ser considerada “acompanhante” ou “suspeita” só por estar hospedada em um bom hotel. É não ter seu cabelo tocado sem permissão ou ainda tê-lo julgado como adequado ou não para uma vaga profissional. Ninguém pergunta a uma mulher branca se ela lava o cabelo com frequência. É parecer mais bonita, desejável para um relacionamento duradouro. Há violências nem sempre físicas, mas simbólicas, às quais mulheres brancas não estão sujeitas. As paquitas, assistentes de palco da Xuxa, não eram meninas brancas, loiras e magras à toa. Que garotas teriam chances reais de estar ali? Que mulheres têm mais chances de assumir um programa de televisão brasileiro?

Não há como pensar em feminismo sem pensar que existem marcas sociais que nos atingem de formas diferentes. Ser mulher branca significa ser lida culturalmente a partir de uma perspectiva favorável, implica privilégios materiais e simbólicos desde o nascimento. Entender que esses privilégios existem é perceber que há mulheres que estão em locais diferentes da pirâmide social e que brancas precisam se engajar para que mudanças sociais ocorram. As desigualdades de gênero e o patriarcado se atualizam e se sustentam também no racismo. Se mulheres negras não se movimentam na estrutura social, os direitos das brancas não se concretizam plenamente e a igualdade de gênero continua sendo uma ilusão. Não haverá avanço enquanto não abolirmos o “quartinho de empregada”.


Texto de:

Laila Melo, jornalista pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mestra em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB)

Tamires Coêlho, jornalista, professora do Departamento de Comunicação Social e do Mestrado em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)

Publicado por Pauta Gênero

Observatório de Comunicação e Desigualdade de Gênero da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), campus Cuiabá.

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